Conceição do Mato Dentro. Foto: Francisco Ferreira.
Tempos Difíceis
Sou
de um tempo e de um local em que nossas mães e avós se sentavam nas calçadas,
enquanto brincávamos na rua e trocavam receitas, orações, simpatias e colocavam
as conversas em dia, ainda que não tivessem mais do que o cotidiano para falar.
Seus maridos – e invariavelmente elas tinham maridos, excetuando-se um ou outro
caso de viuvez – depois do trabalho, passavam na venda para conversar com seus
pares e regar a vida com umas doses. Mas, era de praxe que trouxessem cada um,
o seu embrulho de pães. Naquela época ainda não se havia criado o mau hábito
das sacolas plásticas. O pão era enrolado no famoso “papel de pão” e amarrado com barbante. Além do pão, traziam a sua presença, o seu
olhar severo e protetor e, assim que chegavam, entrávamos e as ruas ficavam
livres para o trânsito dos fantasmas. Raras eram as casas em que havia
aparelhos de TV e, portanto, nossa diversão eram as brincadeiras nas ruas:
queimada, cantigas de roda. E, em casa, a conversa respeitosa com os pais, o
rádio de pilhas e o aconchego familiar. Vivíamos saudáveis de corpo e mente,
gozávamos de liberdade – bem vigiada, é claro – e éramos simples e felizes.
Sou
de uma época em que se respeitava os outros, em que se acolhia de bom grado os
conselhos e reprimendas de quem quer que fosse, desde que tivesse mais idade.
Em que se pedia licença, se agradecia, se cumprimentava, se chamava de senhor e
senhora. As professoras eram Donas Fulanas, nada de tia e você. Não se tinha
materiais diferenciados, cada um mais caro e luxuoso do que o outro, incentivando
o consumismo precoce e a divisão de classes. Brigas eram comuns, mas sempre
entre duas pessoas, não era admissível os massacres que se vêm hoje, quando
grupos espancam um único indivíduo. Formava-se a roda em volta dos contendores
e, caso a briga “esfriasse” por qualquer motivo, pegavam-se duas pedras e as
colocavam perto do pé de cada um e um gaiato qualquer dizia:
− Esta pedra é sua mãe, fulano e aquela
outra é a mãe de cicrano. Quem for mais homem pise na mãe do outro.
E a
briga refervia. Mas, no dia seguinte, exceto por algum olho roxo e a moral
arranhada, estávamos todos em paz e prontos para novas traquinagens. Embora
todo o mundo tivesse um canivete ou uma faquinha – que sempre tinha nome de
mulher, ou, simplesmente “o faínho”
-, ninguém os usava para ferir o outro. Era algo que nos dava a falsa garantia
de proteção e infalibilidade.
Nasci
em um tempo que ainda se cria na justiça – dos homens e divina -, em que
ladrões eram uma raridade e, normalmente, pagavam seus crimes na cadeia. Não
eram tatuados e ninguém, em sã consciência diria que “bandido bom é bandido
morto”. Em que “careta” era usar drogas e todos conheciam os usuários e os
evitavam. Em que o amor e o sexo eram coisas distintas e “se desonrasse, tinha
de casar”. Em que a família vinha sempre em primeiríssimo lugar.
Eram
tempos difíceis, severos e de pais severíssimos. A liberdade era codificada de
acordo com os dogmas de cada família. Mas, entre as casas havia uma cerca viva
ou de bambus e todo mundo respeitava o quintal de todo mundo. Não havia muros,
nem grades e nem portas e janelas fechadas diuturnamente. Não dávamos trabalho
para a polícia, as agências bancárias e dos correios funcionavam em prédios
comuns, quase residenciais. Os poucos carros ficavam estacionados nas portas das
casas, destrancados e com a chave na ignição. Bicicletas amanheciam esquecidas
na rua, qualquer criança acima de cinco anos podia ir à venda e voltar em
segurança. Erámos simplesmente felizes.
Publicação
semanal em minha coluna fixa FIEL DA BALANÇA no blog OCEANO NOTURNO DE LETRAS,
Rio de Janeiro (RJ), em 13/6/17.
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