Da Espessura dos Sonhos e outros Devaneios
O
grande poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto em seu poema O Cão Sem Pluma
(1950), diz: “(...) é muito mais espesso
o sangue de um homem do que o sonho de um homem. (...)” e, de fato, o é. O
sonho de um homem nasce muito antes dele. São hipotecas de pais e familiares,
depositados numa conta corrente onírica, em nosso nome. Em muitos casos,
resultado dos seus próprios que foram abortados. Ao longo da meninice vamos
ostentando e gastando perdulariamente estes “depósitos”. Lembro-me que meus
primeiros devaneios eram de ser engenheiro – nem precisa dizer que eu não fazia
sequer ideia do que seria isto, pois, se o fizesse, tornar-se-ia pesadelo, já
que cálculos nunca foram a minha especialidade – mas alguém da família escreveu
este roteiro e gastei tanto deste sonho alheio para agradar as visitas e orgulhar
aos meus, nas mesas de jantares ou nas sestas em bancos de varanda da velha
fazenda que, felizmente, em certa manhã acordei completamente falido, não
restando sequer uma breve ilusão.
Um
pouco mais crescido, vendo os antigos pais de família de minha rua tranquila
retornarem para suas casas depois do trabalho, carregando seus embrulhos de
pão, guloseimas ao bolso para agradar a criançada e serem cercados pelos
filhos, o afago sem jeito nas esposas; decidi de que aquilo é a que se chamava
felicidade e sonhei-me neles. O homem que descia as ladeiras do bairro trazendo
nas mãos o alimento da prole, envergando o pó e o suor da profissão, a
representação da segurança e do provimento da família, o objeto da espera e
carinho dos filhos, do cuidado da esposa; o ideal de pertencimento, doação
mútua, das trocas, do ter e manter um propósito na vida que nos cobra altíssimo
preço em troca de dar-nos algum. Crescemos juntos, o sonho e eu. Parte dele
vejo sendo realizado todos os dias, mas vieram novos sonhos: casa própria,
emprego fixo, estabilidade emocional e financeira e, de repente, já me vi
hipotecando esperanças em nome de meus filhos. Mais ou menos nesta época veio
ao mundo o grande e perene sonho de minha vida, aquele de que pouco falo, mas
por que muito batalho: inscrever-me no rol dos escritores razoavelmente
conhecidos. Sonho árduo, tantas vezes abandonado e outras tantas retomado, que
apesar de não na velocidade com que queria, vai se realizando gradativamente. E
por estar já numa posição e idade que desfavorece gastar meu saldo de sonhos em
outras aventuras, em nome da realidade me apego sempre mais neste e, por ele, é
que me levanto todos os dias.
São os
ornamentos da vida, os nossos sonhos e são eles que nos alentam a enfrentar a
vida real que se faz cruel e implacável tantas vezes. O perigo é quando
extrapolam os limites e se tornam obsessões, sobretudo em não se tendo
maturidade de, em separando o joio do trigo, em prol deles, abrirmos mãos de
certos prazeres. É o caso da menina acima do peso que sonha em ser bailarina,
mas não sacrifica os doces, o lanche calórico e as massas; ou do garoto que
quer ser jogador de futebol sem, contudo, gostar de exercícios físicos, deixar
das baladas ou do chope com os amigos, entre outras coisas que por serem incompatíveis,
inviabilizam a futura profissão. Como reza a canção popular: “(...) sonhar não custa nada, não se paga
pra sonhar. (...)” mas há um custo para sua realização, independentemente
de seu tamanho. É mister que lembremos que eles são bússola, mapas e rosa dos
ventos que nos apontam para a realização pessoal e a felicidade, não a sua
condição única. E de que é muito mais espesso o sangue, do que os sonhos. Que
ousemos sonhar, mas com os pés bem fincados na realidade, criando sempre
caminhos alternativos, a viamão, opções de felicidade que não estejam atreladas
unicamente a um ideal de vida onírico.
Publicado na Revista
Fênix Logos - n.º 27 - Setembro/2017 - Lisboa (POR) - organização: Carmo
Vasconcelos - pag. 22, em 29/9/17.
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