Flor Silvestre. Foto: Francisco Ferreira.
Xisto:
Marujeiro, Gago e Anjo
A
minha cidade, como toda cidadezinha provinciana, é prodiga na produção de
personagens folclóricos que deixam suas marcas em várias gerações. Quer seja
pela pureza quase angelical de uns, pela excentricidade de outros; quer seja
por serem tão pitorescos, alguns outros. Por aqui já tivemos uma série, de que
pretendo falar ao longo da vigência desta coluna, como por exemplo: Governo
(negro enorme, com sofrimento mental e que usava dezenas de gravatas ao mesmo
tempo), Cocota, Chiquito Lambreta, Zé Pirapama, Inês do Saco, Sá Barba (na
verdade, Bárbara), Sinhana, Toca, Bacurau (que se acredita tenha vivido por
mais de um século), Azulão, Xuxa (os últimos, vítimas de assassinatos cujos
autores e motivações nunca se tornaram claros), Patuá (assassinado com extrema
crueldade) e Xisto – objeto de minha crônica de hoje.
Xisto
era de baixa estatura, meio calvo, com sérios problemas de dicção. Tartamudeava
tanto que levava minutos para articular frases simples, mas se fazia entender,
com um gestual próprio que ele criou – o Libras
Xistenses – como quando queria “desejar” a morte de alguém que lhe
irritasse, dizia:
−
Diiiiiiiiiiiiiirceeeeeeeeeeeuuuuuuuuu! – cruzando os braços sobre o peito, à
moda de um corpo no caixão. E dava gargalhadas apontando para o alvo de sua
zanga. (Dirceu é o dono da mais antiga funerária da cidade).
Vivia de pequenos trabalhos que fazia, como, por exemplo,
transportar lavagem dos restaurantes para criatórios de porcos (isto enquanto
estes não haviam sucumbido diante da proibição da ANVISA, sob as ordens dos
cartéis de “carne fraca” e políticos de caráter fraquíssimo) e também
alimentava os suínos. Era catador de latinhas e como gozava da amizade e do
carinho de quase toda a população, era alimentado pelos donos de bares e
restaurantes e não havia ninguém que deixasse de lhe pagar um café, um salgado
ou mesmo uma pinga. E gostava de uma cachaça, o malandrinho. Andava pelas ruas
de madrugada cantando canções ininteligíveis. Nunca se soube de ter feito mal a
ninguém e nem de ter sido alvo da maldade de outrem. E, dado a extrema popularidade,
ai de quem tentasse lhe fazer qualquer maldade, teria uma boa parcela da
população em seu encalço.
Mas, apesar de sua inocência e natural bondade, gostava
de pregar peças, como da vez em que descobriu, no cemitério local, uma imensa
aboboreira com lindas abóboras. Colheu os frutos e os doou para algumas pessoas
e divertia-se contando de como fez fulano ou beltrano de tal comer abóboras de
cemitério. De outra feita, durante o
Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matozinhos - festa bicentenária que acontece
entre os dias 13 e 24 de junho, em que a cidade recebe dezenas de milhares de
romeiros de todo o país e até do exterior e que tem uma feira com produtos
variados -, catava suas latinhas e as vendia a um comerciante local. Nas muitas
idas e vindas, descobriu um buraco na cerca que dava acesso ao depósito do
material reciclado. Daí que, vendia-lhe um saco de latinhas, passadas algumas
horas, voltava e entrando pelo buraco da cerca, surrupiava aquela saca de latas
e as despejava em outro recipiente e as vendia novamente ao mesmo comprador. Esta
malandragem durou alguns dias, até que o comerciante desconfiado, pegou-o com a
boca na botija e as mãos nas latinhas. Passou-lhe uma carraspana, consertou a
cerca e continuou a comprar-lhe o material reciclado. E o caso rendeu apenas
mais uma anedota com o nosso querido Xisto como protagonista. É preciso que
fique claro não tratar-se de maldade, mas de esperteza inocente de alguém de
coração e alma pura.
Há uns 5 anos o nosso Xisto perdeu a vida num acidente.
Foi atropelado por uma motocicleta e além de tronar-se eterno em nossa saudade
e corações, virou nome de bloco de carnaval, o “Bloco do Xisto”, que estreou
nas festas de Momo há alguns anos. Sua benção, Xisto.
Publicação da semana no blog OCEANO NOTURMO DE
LETRAS (Rio de Janeiro -RJ) – Coluna: FIEL DA BALANÇA em 21/3/17.
http://oceanonoturnodeletras.blogspot.com.br/2017/03/coluna-fiel-da-balanca_95.html